Em uma mão eu segurava uma garrafa de cachaça de banana artesanal e na outra eu tentava, sem sucesso, golpear meu interlocutor. Espumando de ódio com a minha reação agressiva, ele disse “Sabe por que você tenta bater em todo mundo? Porque você tem a mais absoluta certeza que não irá apanhar de volta. Vou te dar uma dica: começa a treinar uma luta e vamos ver se tu não para rapidinho com esses chiliques”. Tudo terminou com ele me passando o endereço da aula de boxe.
Eu tinha uns 20 anos e até então nunca tinha gostado de nenhuma atividade física. Na verdade, eu odiava me movimentar. Ironicamente, sempre fui tida como hiperativa. Sem controle algum da minha vida, na época me apeguei a única coisa que (sentia que) poderia controlar: meu peso. Gastava horas da minha existência planejando o que não iria comer, vivendo a base de Molico Light, maçãs e muito álcool. Lendo coisas bem obscuras na internet, fui sacando que o segredo da magreza era comer o mínimo possível enquanto gastava o máximo de calorias. Comecei a caminhar e até entrei na academia. Em nenhum momento, isso foi considerado esporte por mim. Era só sobre as calorias.
Na segunda-feira após a festa da cachaça de banana, procurei sobre boxe. Não tinha sequer assistido Menina de Ouro, então meu repertório sobre a luta era aproximadamente nada. Do fundo da minha alma, aquilo parecia mesmo algo que me faria feliz, mas o que me levou lá de fato foi a informação da Boa Forma de que uma aula poderia gastar até 800 calorias.
Ainda que se movimentar para manter o corpo esquálido seja uma atitude dolorosa, é nesse movimento que boa parte das mulheres se encontram com o esporte. De fato, parece mais uma punição por ter comido, do que pelo mero prazer de suar, eliminar tensões e se divertir. Pode até funcionar menos do que ir sorrindo para o treino, mas funciona.
Na infância, 69% das entrevistadas disseram que praticavam esportes por diversão.
A partir dos 18 anos, 53% acha outra motivação: o emagrecimento.
(Fonte: Olga Esporte Clube)
Esporte como cura
Cheguei na tal aula de boxe só para assistir. Levei uma amiga de tiracolo, porque estava apavorada. Chegando lá, o professor era um senhorzinho com sotaque português. Para minha sorte, tinham duas ou três meninas praticando. Eu não sabia na época, mas representatividade é tudo. O professor, logo que pôde, veio falar comigo. Me convenci a aparecer na próxima aula pronta para experimentar.
Nem no meu maior otimismo eu poderia imaginar o quão apaixonada eu ficaria pelos jabs e diretos. Mas o começo não foi bem assim. Com a coordenação de uma foca de quem nunca tinha praticado esportes, eu me embananava toda. Somado a isso, eu era excessivamente agressiva, confundia a direita com a esquerda, nunca tinha pulado corda e relutava em receber ordens. Era a aluna mais insuportável que algum professor poderia desejar e, diferente do que eu esperava, o professor viu em mim um enorme potencial.
Meu professor, Sr. Adilson, me salvou de mim mesma de maneiras que não posso explicar. Me faltam palavras para definir o quão paciente e dedicado ele foi nos meses que segui insistindo em aparecer na aula. Ao invés de ir contra a minha agitação-agressiva, ele me cansava bastante com exercícios. No lugar de perder a paciência, ele me fazia repetir os movimentos na frente do espelho até eu conseguir. Ele viu que aquela pedra bruta e canhota, tinha sim, potencial para gastar sua energia em coisas bem melhores que dietas e brigas.
As aulas de boxe foram um divisor de águas na minha vida. Ali eu descobri que passei a vida toda odiando algo que, honestamente, eu sempre amei: me movimentar. Ao me mexer, comecei a fazer as pazes com meu corpo: a partir daquele momento, ele não era um instrumento que precisava ser controlado. Muito pelo contrário, ele precisava ser libertado. Coincidência ou não, foi nessa mesma época que comecei a pedalar.

Pode parecer um fato isolado, mas são muitas as mulheres que se curam ao suar. Simone De Beauvoir, por exemplo, aceitou lecionar em Marselha, longe de Sartre e de Paris, na esperança de se fortalecer como indivíduo. Fez isso por meio de caminhadas extenuantes, que começariam com um par de horas e, ao ganhar resistência física e confiança, suas caminhadas chegaram a ter mais de 40 quilômetros diários.
“Os amigos de De Beauvoir preocupavam-se com ela e aconselhavam-na a
desistir daquelas perigosas caminhadas solitárias. Em especial, insistiam que
parasse de pedir caronas [até as estradinhas que caminhava].
Porém, ela estava numa missão muito mais relevante
que qualquer coisa que eles imaginassem.
Com firme propósito, ela estava recuperando sua alma.
O que significa assumir a pessoa que se é? Significa assumir a responsabilidade
pela própria existência. Criar a própria vida. Planejar a própria programação.
As caminhadas de Simone de Beauvoir se constituíam no método e eram o símbolo
de seu renascimento como indivíduo.
“Sozinha andei sob a névoa que cobria o cume de Sainte-Victoire, e percorri a cordilheira do Pilon de Roi, avançando contra um forte vento que atirou minha boina vale abaixo.
Sozinha novamente, perdi-me numa ravina montanhosa na cadeia do Luberon. Esses momentos, com
todo o seu calor, ternura e fúria, pertencem a mim e a ninguém mais.”
(retirado do livro ‘O Complexo de Cinderela’ de Colette Dowling)
Histórias similares se repetem, como a que Cheryl Strayed conta em seu livro Livre: uma história de autodescoberta, sobrevivência e coragem, em que relata a sua odisseia de mais de 1.600 quilômetros pela Pacific Crest Trail. Também podemos lembrar de Annie “Londonderry” em sua pioneira volta ao mundo de bicicleta. Enfim, exemplos não nos faltam de mulheres que superaram seus demônios ao escolherem se movimentar.
Como ‘devemos’ aparentar x como aparentamos ao nos exercitar

Não é à toa que maioria das mulheres diz buscar emagrecimento ao invés de diversão nos esportes. Ser magra, aparentemente, é melhor do que ser feliz.
Com os padrões tão irreais quanto inexequíveis de belezas, nós mulheres estamos sempre aprisionadas em querermos ser mais magras, mesmo que isso nos custe a sanidade mental, nossa saúde e a tal da felicidade.
Ao superarmos nossos limites controlando calorias, gastamos esta oportunidade de nos superarmos para fortalecer a nossa autonomia. Ao competirmos sobre quem emagreceu mais entre as amigas, não nos encontramos enquanto irmãs. Ao sermos ensinadas que suar é algo negativo, só conseguimos vincular o esporte na nossa existência quando precisamos dele para perdermos quilos.
Ou seja: algo bem doloroso. Relacionando bem estar físico e emocional com controle e dietas, nos distanciamos das alegrias de um jogo em equipe, da felicidade em diminuir o próprio tempo, da delícia de ver as tensões sendo desfeitas em cada gota de suor.
“Uma cultura focada na magreza feminina não revela uma obsessão com a beleza feminina. É uma obsessão sobre a obediência feminina. Fazer dietas é o sedativo político mais potente na história das mulheres; uma população passivamente insana pode ser controlada”. (Naomi Wolf)
Estandartes da beleza ideal, modelos e celebridades são sempre interrogadas sobre como se mantém lindas e esbeltas. Curiosamente, as modelos mais celebradas possuem corpos bem diferentes daqueles que adquirimos ao praticarmos esportes. A impressão que fica, é que para sermos bonitas, precisamos passar fome.
Diariamente, somos bombardeadas com a imagem de um corpo frágil como o ideal. Performar feminilidade passa longe da prática esportiva. Usualmente, quando mulheres são vistas em trajes esportivos, é meramente sexual – e para agradar homens. Sendo assim, é fácil entender porquê as mulheres praticam muito menos atividades físicas que os caras. Essa junção entre o desejo de uma magreza excessiva, com um corpo sem músculos e suor, nos levam a uma combinação tóxica e violenta – e distante do esporte.
A minha luta é diária e ainda levará muitos anos. Sempre que estou muito afundada emocionalmente, é nas endorfinas que encontro conforto – mesmo antes da tão amada terapia. Busco aprender todos os dias o que me faz e o que não me faz feliz nesse sentido. Gosto de me movimentar quase sem querer: ir ao trabalho, visitar uma amiga ou comprar uma cuca. Quanto mais me movo, mais desejo fazer uma trilha, completar um gran fondo ou subir alguma piramba. Descobri que leveza e disciplina são o que me mantém em paz comigo mesma e repito todos os dias. Mais pelo prazer, menos pelos padrões.

Pra mim, fica sempre o questionamento: quantos oscares, prêmios pulitzer; nobel e etc poderíamos ter nas mãos, se a energia gasta em sermos esquálidas fosse convertida em algo mais interessante e produtivo? Quanto sofrimento não seríamos poupadas se descobríssemos, desde a infância, que o esporte é nosso grande aliado? Quão longe iríamos chegar se descobríssemos que corpos musculosos são humanos e não exclusivamente masculinos? Meu palpite é que nem o céu seria o limite.
Se eu puder te dar só uma dica: ao invés de tentar controlar seu corpo, liberte-o. Estou tentando fazer o mesmo.
> Na capa, Annemiek Van Vleuten vencendo o último La Course, com um tempo impressionante, perdendo apenas para dois participantes do Tour de France deste ano: Warren Barguil e Romain Bardet.
> Eu ainda não sei a diferença entre a esquerda e a direita.